Por Fausto Zamboni
O conflito entre
as exigências da consciência e as limitações do meio pode gerar desde a
reafirmação da independência do espírito até a criação de uma série de
camuflagens. Alguns intelectuais, como Sócrates, enfrentaram corajosamente as
consequências, pagando com a morte; mas, na maioria dos casos, quando a
situação coíbe a liberdade de expressão, cria-se um disfarce.
O filósofo Leo Strauss, em Persecution and the Art
of Writing (1952) e em On Tyranny. An interpretation of Xenophon’s
“Hieron” (1963),
demonstrou que, em tempos de tirania, os intelectuais desenvolveram um “segundo
sentido” embutido nos escritos, para evitar conflitos com o despotismo, seja de
alguns poderosos ou da massa agitada. Na Modernidade, os intelectuais, ou
porque oprimidos pelo Absolutismo e a Inquisição, ou porque não queriam revelar
claramente seus objetivos, muitas vezes ocultavam a verdade94. Maquiavel (2011)
confessou numa carta: “Não digo nunca aquilo em que creio, nem creio naquilo
que digo, e quando digo alguma verdade, eu a escondo entre tantas mentiras que
é difícil encontrá-la”.
O exemplo de
Sócrates e Maquiavel são casos extremos, mas há entre eles toda uma gradação
dos casos de camuflagem da verdade e acomodação à situação. Jacques Barzun (1961) dizia que o
medo é o principal inimigo do escritor. O medo de exprimir a verdade e agir
sinceramente acompanha o homem em qualquer meio. No ambiente em que não há tirania, ainda
assim pode haver o medo de não interessar, de não agradar ou de ofender. Isso pode
ocorrer em qualquer ambiente e, em última análise, depende da personalidade do escritor,
mas os ambientes de produção coletiva, como a universidade, têm maior poder coercitivo
sobre os seus membros.
Para Barzun, os
costumes democráticos, por sua própria natureza, tendem a reprimir a
conversação intelectual. Seu ponto de partida é a contradição, o que implica
que um ou outro tem que estar, pelo menos, parcialmente equivocado. O maior
medo, diz ele, não é o erro, mas o rompimento com a unidade do grupo. “O
raciocínio é este: você é um contra muitos = você está
equivocado = você é um néscio”96 (BARZUN, 1961, p. 86), e ainda que a História, desde
Sócrates, tenha mostrado o contrário, o efeito inibidor permanece. Esse
esquivar-se dos conflitos é uma forma elementar de autoproteção, uma defesa do
indivíduo que se sente frágil diante de um sistema em que a maioria detém o
poder:
“a consciência
democrática deseja, antes de tudo [...] acrescentar amigo a amigo e achar amigos entre si
[...] anela principalmente, que tudo e todos sejam agradáveis” (BARZUN, 1961, p.
88).
Por isso, em
relação a alguém que desaprovamos preferimos dizer: “estou completamente de
acordo com você, mas...”; sobre alguém que nos desagradou, dizemos: “gostei
muito do fulano, contudo...”. Quando queremos contradizer, diz Barzun, usamos frases
como: “posso estar equivocado, porém...”; “só estou pensando em voz alta”; “só
por provocação, gostaria de expor o problema sob este ponto de vista...”. O
homem que deseje furar essa barreira protecionista em nome de uma discussão
mais franca é facilmente visto como rude e insensível.
Nesta condições, é
preferível frear o Intelecto que “é forte e atua, e se mostra superior à falta
de intelecto na proporção em que toda destreza está para a incapacidade. Conscientes
de seu peso, alguns possuidores de Intelecto tratam de escondê-lo, ou o desculpam” (BARZUN, 1961, p.
90). Desta forma, o que seria um debate ou uma conversação intelectual
transforma-se numa sondagem dos oponentes:
Rara vez prestam atenção ao que se
lhes diz, na avidez de descobrir o que lhes é contrário. Suas antenas e
instintos se põem em atividade e não — como seria justo — seus ouvidos e sua
razão. Isso explica a incoerência das falas em público e a dificuldade de
manter uma conversação geral entre seis ou oito pessoas. Cai-se num tête-à-tête
para mútua auscultação. (BARZUN, 1961, p. 90-91).
Consciente desse
problema, Bertrand Russel alerta que é impossível
... ser um bom professor sem que se
tenha tomado a resolução firme de nunca, no decurso do seu magistério, ocultar
a verdade em nome do que quer que se considere ser ‘não-edificante’. A
ignorância cautelosa produz uma virtude frágil que se perde ao primeiro contato
com a realidade. (RUSSEL, 2000, p. 82).
Na nossa época, em
que as limitações internas da profissão, as exigências socioeconômicas e o
politicamente correto dificultam a busca desinteressada da verdade, a advertência
de Bertrand Russel é mais atual do que nunca.
(...)
O homem só se
torna um intelectual se, renunciando a uma vida confortável, submeter-se a um
esforço contínuo para superar-se a si mesmo. Assim, o intelectual separa-se do
homem comum, e isso acarreta uma rejeição contra ele. Jacques Barzun (1961) diz
que, ao longo da história, o Intelecto foi sempre odiado por ser sentido como
um sinal de superioridade social, associado à aristocracia e ao poder.
A hostilidade do homem comum contra
o intelecto é de todo tempo e lugar. É um ódio compreensível, relacionado com o
espírito gregário [...] o grande símbolo do Intelecto martirizado — Sócrates —
foi uma vítima do mesmo ressentimento espontâneo que reúne uma maioria, na
escola, contra o menino estudioso [...] Esse sentimento é tão universal que
quem deseje enfrentá-lo perceberá imediatamente que está se opondo a uma força
da natureza. Porém, apesar desta natural oposição os ter prejudicado, nunca ela
reprimiu o Intelecto105. (BARZUN, 1961, p. 19).
Numa época que
cultiva o ideal igualitário, contudo, aumenta o rancor diante de tudo o que
aparente privilégio e eminência. O regime democrático estimula, por sua própria
natureza, um nivelamento demagógico por baixo, diz Laurent Schwartz (1884, p.
8), “dirigido contra todo talento, toda qualidade, contra tudo que ‘supera’”.
Isso afeta particularmente a universidade, que forma homens com conhecimentos e
gostos que os diferenciam do resto da população.
Devido ao novo
credo igualitário, os eruditos, mesmo na universidade, são vistos com
desconfiança. O conceito de autoridade decai no âmbito educacional,
juntamente com a tradição que o professor representa. Com a politização, a
universidade perdeu parte da sua autonomia; agora, influem nas questões
acadêmicas desde os grandes organismos internacionais até os estudantes, que
têm voz ativa em quase todos os setores, opinando a respeito do currículo e
participando das decisões administrativas.
Notas:
94 O medo de
desagradar aos semelhantes não é um mero exagero infundado. Como demonstra René
Girard, na teoria do bode expiatório, o homem é o único, dentre os animais, a
executar um inimigo, a ter poder de vida e morte sobre outro homem, a vingar-se
dos danos sofridos, mesmo depois de várias gerações. Por isso, ainda que nem
sempre esta tendência seja levada a cabo, todos sentem, intuitivamente, que não
devem desagradar ao grupo.
(Extraído da Tese de Fausto
Zamboni: Literatura, Ensino e Educação Liberal, disponível aqui:
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